RUMORES E CONTINUIDADE DE UM CERTO BARROCO MODERNO. NOTAS SOBRE UM PROJETO EM PROGRESSO

Belo Horizonte / MG

Tudo começa com as curvas: da mulher, das montanhas e das ondas do mar. Em seguida, surge um povo que necessita de um novo imaginário para suportar as explorações do passado. Há também a necessidade de um líder e de seus agentes, construindo novos caminhos, imagens e lugares… Dizem que vislumbrar aquilo que ainda não foi ao mesmo tempo em que se percebe tanto as conquistas como também os fracassos, é algo imprescindível a qualquer projeto.

 

Mas há também um certo efeito -o qual parece ter se instaurado no imaginário cultural local -que é exercido por uma paisagem curvilínea resultante das curvas de nível das escavações e das picadas sinuosas que escoavam a mineração. A partir dessas paisagens, temos pistas que nos permitem ler certa parte (aquela dita oficial) da Arquitetura Moderna Nacional, como uma possível inversão complementar aos vazios deixados pelos ciclos de mineração do passado, ou seja, ligada a certos valores arcaicos oriundos da exploração. Construção e escavação, um negativo e positivo do outro, sincronizados e em constante movimento, alimentando ciclos de exploração e progresso. Para artistas, arquitetos e outros híbridos (que seriam depois chamados designers, mas também podemos incluir certos tipos de administradores, poetas e governantes), o Modernismo significava uma nova perspectiva, ainda que de difícil aceitação. Ele pretendia chocar, revirar os costumes e gostos burgueses, dar forma a uma nova ideologia política que construísse uma nova sociedade ao instaurar novos regimes sociais de produção material e subjetiva de vida. Se o Modernismo europeu propunha uma limpeza dos ornamentos e outros penduricalhos como forma radical e austera de romper com valores opressivos do passado; o Barroco, por oposição ao Renascimento, era assumido como anti-clássico, arte bastarda e radical. Teríamos, assim, em ambos uma atitude de oposição às regras vigentes. Tal fato permitiria estabelecer certas comparações funcionais entre estas manifestações, porém muitas das obras ícones de nossa Arquitetura Moderna parecem existir numa lógica oposta a tal diretriz. Deste modo, podemos indagar: e se o Modernismo não passou, em nosso território, de apenas uma releitura, de uma atualização de certos valores do passado ligados a uma forma peculiar e local de Barroco? Que resultados poderíamos identificar nessa hipótese?

 

Para além dos discursos progressistas e promessas políticas de modernização, nossa raiz artística reside no Barroco. Ele é nossa antiguidade, defendia Lucio Costa. Mas, o estilo adquiriu tal pervasividade em nosso território, que se tornou mais do que forma artística: da profusão de detalhes, ornamentos e arabescos destinados a ocupar todo o espaço da representação, ele se transformou em modo de vida, forma de agir e de saber, num paralelo às dinâmicas de colonização (cuja ordem era ocupar, ainda que desordenadamente). Ele se prestou a manifestar o gosto do poder absoluto, da aristocracia rural, da burguesia mercante e do poder catequizante. Não é à toa que a riqueza do ouro e da mineração tenham embasado a beto shwafaty implantação do estilo como linguagem visual do Império Colonial, infiltrando-se consequentemente na formação da subjetividade e do imaginário social. O discurso em defesa de uma origem barroca criado por Costa é exemplar, pois afirma que nossa “antiguidade” poderia situar-se numa vertente barroco-jesuíta, vista por muitos como pobre e desprovida de excessos, austera -como deveria ser a Arquitetura Moderna -e ao mesmo tempo única, pelo modo singular com que o Barroco fora implantado “originalmente” pelas missões catequizantes. Há também os impasses envolvidos na construção do Grande Hotel em Ouro Preto, cujo projeto arquitetônico-moderno deNiemeyer, defendido por Costa, gerou enorme controvérsia sobre o modo (por vezes arbitrário) pelo qual a História é encarada e intervenções em seus patrimônios realizadas.

É a partir destas linhas que podemos observar a recuperação e permanência do Barroco, não como estilo mas como lógica que influenciou o modo pelo qual a Arquitetura Moderna Nacional se construiu, a reboque dos novos poderes nacionais. Então, o principal programa desse Modernismo, cuja antigüidade reside no Barroco, serve à construção (ou melhor, ao remake) de um imaginário de poder. São imagens, formas e esquemas de representação, ligados a um tipo de atuação que não se encara como colonial mas que, contraditoriamente, se ancora nesta condição passada. Um Barroco Moderno, cujo corpo de ideias gera um projeto estético pautado numa constante de variações formais através do tempo, que revelam não ruptura mas continuidade. Continuidade esta que extrapola a esfera formal e ao final, revela propósitos histó- ricos, econômicos e ideológicos similares.

 

Esta contradição não era tão clara na primeira metade do século XX, quando houve certa coincidência entre os planos estéticos de vanguarda e as ideologias políticas progressistas, as quais despontavam como promessas de desenvolvimento tanto econômico quanto social. Mas se lembrarmos, por exemplo, do passado do lago da Pampulha como área de mineração e seu complexo arquitetônicomoderno como marcos de uma nova paisagem imobiliária em expansão, podemos entendê-los como faces de uma mesma moeda: exploração e progresso. E tais movimentos ainda ecoam nos modos em que certas esferas atuais do poder fazem uso de um vocabulário estético-arquitetônico-moderno para materializar sua presença pública através de edifícios suntuosos, brancos, de concreto, envidraçados e com azulejos (nestes há algo de tecnológico e abstrato, de simples e icônico). São certamente construções despidas da excessiva ornamentação e detalhes do Barroco, porém, ao tomarmos certa distância parecem eles mesmos ornamentação em escalas monumentais, encravadas em nossa paisagem. Há nesses atos monumentais, nesta vontade construtiva, um potencial destrutivo sobre certas ordens naturais. Há, nesses edifícios, muita forma e pouca função. Faltam atenção aos detalhes, ao que é diminuto, à escala humana. São construídos, quase sempre, numa situação provisória e apartada que se faz permanente. Entre uma raiz Barroca-festiva e uma vontade de ordenação Modernaconstrutiva, os equipamentos utilizados pelo poder assumem, então, um status pseudo-moderno. Parecem algo inerente à paisagem, um elemento local. Mas tal entonação mascara sua alienação contextual. São trompe l’oil, ilusão e deformação, como no Barroco. São dispositivos que encarnam, ao final, a toada de antigos regimes, atravessados por pólos opostos que anulam a possibilidade de construir uma outra paisagem, histórica e social. A nossa Arquitetura Moderna, curvilínea e sensual, é também Barroca, colonial e mineral.

 

E é partir destes episódios históricos que podemos encontrar as origens de certas controvérsias atuais, como por exemplo das possíveis relações entre a exploração do minério nióbio e os recursos utilizados na construção da nova Cidade Administrativa do Estado de Minas Gerais, num caso cercado de rumores sobre envolvimentos entre esquemas de corrupção, desvio de recursos públicos e até mesmo contrabando desse minério. Assim, do ouro ao nióbio, do colonial Barroco ao Moderno sensual, das Minas Gerais ao Rio de Janeiro, do interior explorado ao porto- -capital… o Barroco Moderno parece nunca ser infra-estrutural, mas composto de rumores e episódios que se constituem como belas e raras excessões.

 

A sedução pelas formas ainda beto shwafaty residência persiste. Não há mais metais preciosos para embasá-la e sim novas terras raras, gerando recursos para a construção de palcos do poder, porém de uma velha história. Triste fim para esse Modernismo, que não se deglutiu e virou tradição, no pior sentido. Perdeu-se pela falta de ruptura com uma ideologia manca e colonial. Estaríamos, assim, fadados a ser eternamente Barrocos? Mas a realidade é que, talvez, ainda não tenhamos sido de fato Modernos.

Beto Shwafaty

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